Crônicas de um homem qualquer
Sob a cama num emaranhado de lençóis brancos
acolchoados, a enorme mancha de vinho. Marca de mais uma noite regada à bebida
e prazer. Os
pés descalços e sujos na cama evidenciavam a longa noite agitada. Um corpo
sobre o outro. Ambos nus, cansados, suados e levemente adormecidos.
O ruído que ela fazia ao dormir o
despertava. O movimento do peito ao respirar, sua pele delicada, seu
rosto feminino, seus contornos suaves. Ele a tudo percebia.
Sabia que teria que mandá-la embora
pela manhã. Conhecia bem o que estava por vir.
Mais uma noite se passou e como todas
as outras noites, essa não foi diferente. Uma noite previsível pensara. Era
apenas mais uma mulher em sua cama. Ele nada sabia sobre ela, mal lembrava
seu nome.
Tinha sido assim nos últimos
meses. Uma rotina displicente e erótica. Uma felicidade usurpadora e dissimulada
para cada uma de suas vítimas. Não se sentia vitorioso em relação às essas mulheres,
não se sentia usado por elas, tampouco. Sabia que se enganava diariamente com repetições
das doses letais de sua falsidade e covardia, mas era o que lhe restava, era o
que convinha.
A mulher se mexia na cama, e ele
fitou mais uma vez seus pés imundos sobre o corpo dele. Dedos sujos, unhas
pintadas de vermelho com esmaltes lascados. Suas pernas agora subiam pelo seu
quadril. Ele não se mexia, não planejava acordá-la. Quanto mais tempo tivesse
antes de mandá-la sair, melhor seria. Não que precisasse de tempo para inventar
desculpas, ele já as tinha decorado. Ele sabia, entretanto, que todas
mergulhavam em profunda raiva e desprezo, e de alguma forma aquilo o atingia.
Sobretudo, as que choravam. E como choravam as que entendiam tudo.
Passado o efeito do vinho, no dia seguinte,
as pobres mulheres se davam conta de que estava tudo acabado. Promessas, jogos
de sedução, amores, olhares, e todos os seus caprichos teriam acabado em uma
noite apenas. Elas reconheceriam o fim de tudo pela manhã. E ele lamentaria
aquela noite até que o próximo sol viesse a se pôr. E então recomeçaria o
ciclo.
Ele precisava disso. Sabia que se enganava.
Sabia que iludia ao menos uma delas por dia, mas era o que o mantinha vivo.
Enganava-se para viver. Escondia para não sofrer. Inventava essas noites por
acreditar que em algum momento ficaria são. Estaria livre de suas recordações,
de seus pensamentos. Ironicamente os mesmos o acompanhavam todas as manhãs em
sua cama.
Suas lembranças malditas. Suas
recordações astutas vinham sem avisar apesar de todo o controle para fazer a
situação ficar perfeita com uma grande noite. Agora repassava uma a uma
mentalmente mesmo sem querer. A essa altura o controle da mente era impossível.
Cansado, faminto e sonolento, sua mente vagava entre suas torturas mentais e a
respiração lenta da mulher ao lado.
Tentou levemente se mexer. Levantou a
cabeça lentamente e viu roupas jogadas pelo chão. Sentiu vontade de ir ao
banheiro. Procurou pelo relógio de pulso que sabia que havia caído em algum
lugar por ali. Pensou duas vezes se deveria mesmo levantar e arriscar perder
mais alguns minutos de paz para aliviar sua bexiga. Se levantasse, ela
provavelmente acordaria.
Estava incomodado. Parte dele queria
livrar-se das cenas que viriam. Parte dele queria postergar alguns minutos de
calmaria. Resolveu esperar. Não soube dizer quanto tempo, ficou ali inerte, mas
ele sonhou.
Em seu sonho ele corria num campo com
muitas flores. Eram fartas, coloridas, vivas e sadias. Não se cansava, apenas
corria de braços abertos pelo enorme jardim de flores. O sol resplandecia e
raios solares eram delicadamente despejados sobre as flores e ele. Sentia a
vida, sentia o amor. Uma energia
sobrenatural o acompanhava naquele jardim e a presença de tanta cor, cheiro,
luz e paz o deixavam embriagado. Era tudo o que precisava.
Num breve lampejo, acordou. Lamentou
profundamente estar vivo. Olhou para a mulher enrolada ainda em seu corpo, mas que
desta vez tinha seus olhos verdes bem abertos. Enormes olhos esperavam ansiosamente
por um dia que ele sabia que não seria bom, esperava por minutos em que ele
estragaria todo o vestígio de uma boa noite.
Ele precisava se desfazer dela.
Precisava ficar só. Fechou seus olhos, respirou profundamente e disse a si
mesmo: a paz acabou.
Em poucos minutos a mulher entendera
tudo. Magoada e histérica, abandonava a casa aos prantos. Ele voltava a sua
bebida cheio de remorso e dor.
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